Foi no ano de 1980, após um
período de intensa pesquisa, que o livro escrito por Michel de Certeau, A invenção do Cotidiano, foi publicado
pela primeira vez. Certeau é um historiador
reconhecido internacionalmente devido a sua respeitavelmente produção científica.
Em suas publicações ele questionou a noção de verdade e as ideias cristalizadas
que existiam entorno das instituições de saberes. Destarte, o também jesuíta,
propõe, principalmente através desta obra, que as relações de consumo não são
tão passivas quanto era pensado, mas que devemos nos atentar para as práticas
de desvios que eram realizadas pelos consumidores quando eles faziam uso de
determinados produtos.
Para tanto, ele estava
determinado a resistir aos ilusionistas resultados numéricos dados pelos
métodos quantitativos e se direcionar as teorias das práticas cotidianas. De
acordo com o seu objetivo e as suas principais orientações, ele refletiu sobre
uma cultura da sociedade ligada ao comum, a uma maneira de praticar, de se
apropriar e reapropriar, que também podem ser entendidas como práticas de
resistências ou de inércia, isto é, as astúcias de uma rede de antidisciplinas.
Acredita-se, pois, que o termo “antidisciplinas” seja um reflexo da sua
pesquisa em resposta a de Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir.
Portanto, a obra A invenção do cotidiano: a arte de fazer,
narra às práticas comuns realizadas em um espaço de teias de solidariedade e
ações de luta. Estas ligadas a maneira de viver, de fazer, como o próprio
subtítulo já traz, por isso, a análise certamente está voltada às variantes do
seu objeto e da realização de uma cultura ordinária. Através desta ótica, o
indivíduo deixa de ser, apenas, observado enquanto um operário normatizado na
sociedade.
Admite-se que o consumidor
não estava exercendo a sua condição de maneira passiva e disciplinada. Ele
passa a ser observado de maneira mais criteriosa, maliciosa, desconfiada. Ele é
visto em sua particularidade, e, assim, podemos perceber que na realidade a
relação social determina seus termos e não são os termos que a determinam, e
que “a individualidade é o lugar onde atua a pluralidade” (CERTEAU, 2017, p
38). Nesta rota de reflexão, a pesquisa busca
explicitar as combinatórias de operações que compõem
também (sem ser exclusivamente) uma “cultura” e exumar os modelos de ação
característicos dos usuários, dos quais se esconde, sob o pudico nome de
consumidores, o estatuto de dominados (o que não quer dizer passivos ou dóceis).
O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada (CERTEAU, 2017,
p.38).
Percebe-se que o uso ou o
consumo não são feitos, de acordo com Certeau, de maneira passiva, mas são
fabricados. Os consumidores fazem uso de uma astúcia silenciada, eles caminham
em campos que não permitem a sua visibilidade, eles agem devido à oportunidade
da ocasião, sendo, desse modo, na maioria das vezes, não detectáveis. Com isso,
percebe-se que por mais que a produção do produto seja feita alicerçada em
paradigmas racionalizados, em lugares estratégicos, haverá sempre espaço para a
clandestinidade. Pois, quando o astuto consumidor identifica a brecha, a falha,
o ponto específico para ataque, o momento clandestino e propício para agir com
cautela, para utilizar-se da arte de fazer, para realizar a inversão discreta,
ele a faz.
Para exemplificar os usos do produto pelos
consumidores, pelos meios populares, contra as medidas impostas pela a elite
produtora o autor fala da subversão dos indígenas e das suas práticas em um
cotidiano do qual não poderiam fugir, de seus comportamentos que iam de
encontro contra as normas estabelecidas pelas forças dominantes, pela onda
colonizadora. Vejamos:
Assim o espetáculo sucesso da colonização espanhola o
seio das etnias indígenas foi alterado pelo uso que dela se fazia: mesmo
subjugados, ou ate consentindo, muitas vezes esses indígenas usavam as leis, as
práticas e as representações que lhes eram impostas pela força ou pela sedução,
para outros fins que não eram os dos conquistadores. Faziam com elas outras
coisas, subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou
transformando-as (isso acontecia
também), mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de regras, costumes ou
convicções estranhas à colonização da qual não podiam fugir (CERTEAU, 2017, p. 94).
Este trecho citado
anteriormente acaba fazendo-nos atentar para a questão de que existe uma distância
entre a produção da imagem e a produção secundária. A distância está pautada na
arte de fazer (de se apropriar e reapropriar) pertencente ao seu usuário e
realizadas nos seus lugares, nos seus momentos, nas suas relações sociais que
são regidas por suas próprias vontades e as suas próprias regras. Por
conseguinte, o consumidor, tanto no lazer quanto no trabalho (áreas que se
fundem) “possuem mil maneiras de ‘fazer com’” (CERTEAU, 2017, p.
91).
A disciplina, por
consequência, em meio a todas as artes de “fazer com” acaba por torna-se
quebrada por práticas microbianas, minúsculas, que são produzidas no cotidiano.
Ela é rompida por táticas realizadas por pessoas que não estão satisfeitas com
a norma. Nessa conjuntura acaba restando aos insatisfeitos, apenas, a alternativa
de alterá-la e assim se propõem a formar, com isso, a rede de uma indisciplina.
Esta é a arte de inverter as regras, de consumir, de utilizar ao seu bel
prazer, em que a marginalidade individual acaba por se transformar em uma
marginalidade coletiva.
Entretanto, não podemos
confundir uma marginalidade de massa com uma ação homogênea, pois além da
astúcia ser criativa e se manifesta de diversas maneiras, ela também é
realizada em um campo de forças desiguais e não consegue gerar, nesse meio, os
mesmos resultados. As táticas em sua maioria acabam por se desenvolver em
detrimento de tensões e violência, partindo do fraco para adquirir, retirar,
conseguir algum privilégio dos considerados como mais fortes. Nesta situação o
lado mais fraco pelo menos em um instante consegue para si uma força
momentânea.
De maneira geral, o autor
utiliza dois conceitos fundamentais para falar dessa cultura que se prolifera
nas relações e nas criações anônimas em meio a todo esse teatro de operações: a
estratégia, representada pelas instituições (escolas, igrejas, exército – os
produtores); e a tática representada pelas pessoas comuns (os chamados homens
ordinários – os consumidores). A estratégia é o cálculo de manipulação, ela
define um espaço, um lugar de querer e poder, uma base para conseguir controlar
as relações, ter vantagens e exercer uma prática panóptica. Este lugar é
dominado por forças que permitem observar e controlar. Antecipando porventura
problemas que possam surgir. A estratégia tem como status as forças dominantes
e, além de se manifestar através das instituições, se manifesta também através
do uso dos seus produtos, por isso, é considerada inflexível.
Já a tática faz parte de uma
situação calculada exercida no espaço do outro (em um não-lugar) devido ao fato
de que ela não possui nenhuma base de operações. Atua no território inimigo.
Aproveita as ocasiões, pois sem ela não há como usar a tática. Por isso podemos
afirmar que ela possui mobilidade, que está sempre sorrateira, vigilante, a
espreita, aguardando apenas que os espaços no território do outro se abram, se
mostrem. Quem pratica a tática está sempre caçando, agindo nos pontos onde não
se espera, no ponto fraco, de maneira ágil e flexível. Portanto, ela é
comandada pelo acaso, pela ausência de poder, com a função de tornar a posição
do mais fraco fortalecida mesmo que seja por um instante.
Contudo, a tática não
enfrenta a estratégia de frente, não tenta dominá-la ou vencê-la, mas ela faz
uso de uma máscara que aparentemente mostra conformidade de toda a situação. “Sem
lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz, [...] comandada pelos
acasos do tempo, a tática é determinada ausência de poder assim como a
estratégia é organizada pelo postulado de um poder” (CERTEAU, 2017, p. 101).
Então conforme as discussões
estabelecidas em todo o texto nós podemos acompanhar a maneira na qual o autor
analisa toda esta cultura de burla em uma sociedade que através das práticas
cotidianas aproveitam as oportunidades de enfraquecimento das zonas de estratégias
para fazerem uso da astúcia, para “fazer com”, para se fortalecer no território
do outro.
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